O menino do pijama listrado
SINOPSE
Alemanha, Segunda Guerra Mundial. O menino Bruno, de 8 anos, é filho de um oficial nazista que assume um cargo importante em um campo de concentração. Sem saber realmente o que seu pai faz, ele deixa Berlim e se muda com ele e a mãe para uma área isolada, onde não há muito o que fazer para uma criança com a idade dele. Os problemas começam quando ele decide explorar o local e acaba conhecendo Shmuel, um garoto de idade parecida, que vive usando um pijama listrado e está sempre do outro lado de uma cerca eletrificada. A amizade cresce entre os dois e Bruno passa, cada vez mais, a visitá-lo, tornando essa relação mais perigosa do que eles imaginam.
CRÍTICA
Assuntos absurdamente sérios não deveriam ser tratados de forma leviana. E os males provocados pela ascensão ao poder de Adolf Hitler na Alemanha nos anos 30 e 40, certamente se enquadram nesta categoria. E é justamente por isso que filmes como O Menino do Pijama Listrado devem ser evitados: por tentar transformar algo tão terrível num tema leve e pueril. Assim como o equivocadamente oscarizado A Vida é Bela (1997), outro péssimo exemplo do mesmo caso, o enredo tenta observar a tragédia da Segunda Guerra Mundial através de olhos infantis, minimizando seus efeitos e consequências. Porém, diferente do longa italiano citado, ao menos no momento da conclusão eles parecem ter se dado conta da grandiosidade do tema que estavam abordando, partindo para um final ousado, mesmo que desconexo com o resto do discurso até então adotado.
O nazismo, que nunca abandonou realmente o cinema norte-americano, aparentemente voltou com força nos últimos tempos. Filmes como esse e o recente Um Homem Bom (2008), além do novo trabalho de Tom Cruise, Operação Valquíria (2008), resgataram estas lembranças para as massas. Porém, além disso, outra coisa em comum que possuem entre si é a péssima recepção que tiveram, tanto junto ao público quanto com a crítica. São obras revisionistas, que propõem uma nova abordagem sobre um evento há muito explorado. O que aconteceu foi horrível, sim, e não há como “dourar a pílula”. Tudo que puder ser feito para impedir uma repetição dos fatos deve ser incentivada, obviamente, mas nunca desprezando o respeito e a inteligência do espectador.
Pois é justamente isso que O Menino do Pijama Listrado defende: uma nova verdade sobre o ocorrido, de que as ações do governo nazista eram basicamente propaganda para ludibriar o povo, e que este em sua quase totalidade pouco tinha consciência do que de fato acontecia nos bastidores. Ou seja, com exceção dos oficiais militares, todos eram mais ou menos como o protagonista da trama, uma criança que é levada a morar no interior e, pela própria solidão, acaba se aproximando de um garoto que usa um pijama listrado durante o dia e que mora numa fazenda vizinha. O que o menino não sabe é que, na verdade, o novo amigo é um prisioneiro judeu, encarcerado num campo de concentração e prestes a ser assassinado. E a ignorância e covardia que o personagem principal demonstra nada mais é do que uma tentativa de justificar o que, segundo o diretor e roteirista Mark Herman (inacreditavelmente o mesmo do ótimo Laura: A Voz de um Estrela, 1998), assim como John Boyne, autor do livro em que a história se baseia, se passava por todo aquele país na época. É quase como se dissessem: “sim, o que aconteceu foi horrível, mas foi obra de dois ou três malucos, não de toda uma nação”. E nada mais certo do que a própria História para contradizê-los.
Escolhido como Melhor Filme segundo o júri popular no Festival de Chicago e indicado em três categorias no British Independent Film Awards – Vera Farmiga ganhou como Melhor Atriz – é uma daquelas produções que pode facilmente enganar sua audiência, bastando para que isso aconteça que ela se deixe levar pelo que está sendo narrado, sem raciocinar muito sobre o que é dito nas entrelinhas. Mas qualquer um que parar por um instante e ligar alguns pontos mais óbvios perceberá que nem a reviravolta trágica final é suficiente para apagar um texto confuso e carente de uma maior precisão histórica. Melodramático, clichê e previsível, o longa acaba se posicionando não mais do que como um mero artigo publicitário, assim como aqueles que Hitler difundia e que aqui são pretensamente criticados. Uma triste ironia.
CAMPO DE CONCENTRAÇÃO:
EXPERIÊNCIA LIMITE
Por: Marion Brepohl de Magalhães
É um homem quem mata, é um homem quem comete ou suporta
injustiças; não é um homem que, perdida já toda a reserva,
compartilha a cama com um cadáver. Quem esperou que seu
vizinho acabasse de morrer para tirar-lhe um pedaço de pão,
está mais longe (embora sem culpa) do modelo do homem
pensante do que o pigmeu mais primitivo ou do sádico mais
atroz. Uma parte de nossa existência está nas almas de quem
se aproxima de nós; por isso, não é humana a experiência de
quem viveu dias nos quais o homem foi apenas uma coisa ante
os olhos de outro homem.
Primo Levi
RESUMO
O objetivo deste artigo é o estudo de alguns aspectos da violência
exercida nos campos de concentração da Alemanha nazista,
considerando os elementos de cristalização que predispuseram os
indivíduos a praticarem ou tolerarem o ato extremista. Analiso também,
no tocante à violência contra o pensamento, as relações entre memória
e História, valendo-me do testemunho de um sobrevivente que fez de
toda a sua atividade intelectual um esforço para compreender o
significado daquilo que tornou possível e memorável Auschwitz.
O tema proposto − a violência nos campos de concentração da
Alemanha nacional-socialista − é, possivelmente, menos inintelígível no
campo da Literatura do que no campo da História. Além de ser a linguagem
estética mais identificada com metáforas e de sua aproximação à consciência trágica − de quem é tributária −, ela permite aproximar o leitor da experiência do narrado. Quanto a nós, os historiadores e demais cientistas sociais, encontramos enormes dificuldades em nomear o acontecimento. Dificuldade que decorre de nossa incapacidade de atribuir-lhe significado. Isto
porque estamos conscientes de que a “história constitui-se na diferença entre intenção e resultado das ações” humanas (RÜSEN, 1997, p. 127). Ora,
no que se refere às intenções, a historiografia aponta para algumas respostas: confirmar a não humanidade daqueles prisioneiros, treinar pessoas para
serem capazes de exercer qualquer sorte de brutalidade, a ideologia da limpeza étnica; ...mas, quanto aos resultados, esta é uma questão ainda em
aberto: muitos sobreviventes estão por testemunhar, reclamam-se políticas
que reparem aqueles crimes, há processos não concluídos, há inclusive o
revisionismo,1
uma estupidez que pretende provar que o que aconteceu não
aconteceu, mas que é, não obstante a isto, um dos resultados daqueles acontecimentos.
Ademais, a História, cuja tarefa é a de racionalizar o passado, defronta-se, com relação a esse tema, com a memória, que insiste em mantê-lo vivo, continuamente presentificado, principalmente no seio da comunidade
judaica. Insistência que assume, conforme Seixas, “uma dimensão ética e
política, pois este passado deve nos deixar alerta sobre sistemas novos, e no
entanto, análogos” (2000, p. 77).
Para iniciar nossa tarefa, cito alguns termos utilizados para nomear
o que foi feito nos campos de concentração, os quais evidenciam a dificuldade que mencionei.
Holocausto: como tal acontecimento foi inicialmente denominado
e como ficou mais amplamente conhecido, é um termo impreciso, quase um
eufemismo; deriva da palavra sacrifício − no sentido literal, significa “totalmente queimado”, dizendo respeito aos sacrifícios de animais que se faziam aos deuses, logo, um ato voluntário dedicado ao Sagrado. Ora, nem o
elemento religioso nem qualquer hipótese de livre opção estiveram presentes, fossem da parte das vítimas, fossem dos perpetradores.
Shoah: também de origem bíblica, significa extermínio, catástrofe,
devastação,2
pressupondo um castigo. Novamente, o termo não se aplica,
porquanto as vítimas não foram presas por algum erro ou crime e, mesmo
que o tivessem sido, a pena não era executada em nome de um mandato
divino. Como afirma Primo Levi, sobre seu povo: “...Nós , afinal de contas,
provamos também uma certa co-responsabilidade humana, pois Auschwitz
era uma obra de homens, e nós somos homens...” (1998, p. 216)
Mesmo se nos dispusermos a nos colocar no lugar dos perpetradores
− tarefa que se impõe ao historiador, como nos ensinou Lucien Febvre − e
conseguirmos compreender que, para os nazistas, os judeus representavam
um mal à raça ariana, por que maltratar os moribundos, os agonizantes?3
Ainda, com relação aos que não eram inimigos da raça, como os comunistas, os clérigos e os Testemunhas de Jeová, por que não lhes conceder a
chance do arrependimento?
Poderíamos entender o holocausto ou o shoah como uma provação? Um sofrimento de difícil resistência para provar a fé? Certamente
houve muitos que mantiveram a sua fé e isso inclusive lhes conferiu força
para sobreviverem, mas, do ponto de vista religioso, não foram os que melhor se comportaram que sobreviveram. Ademais, nem mesmo os nazistas
podiam acreditar que aquele sofrimento provinha de Deus.
Era o inferno então? Recordo-me de Hannah Arendt ter empregado, certa vez, o termo inferno terreno para a tortura que se impunha aos
prisioneiros nos campos de concentração (1993, p. 70). O inferno, como
foi concebido pela cosmovisão judaico-cristã à época medieval, não era o
lugar da morte, mas do sofrimento eterno, de um sofrimento tão grande,
que as pessoas preferiam morrer a ter de suportá-lo. É bem verdade que
semelhante sensação devem ter tido aqueles prisioneiros, mas lembremonos de que, tanto nos textos religiosos como na cultura popular, o inferno é
a habitação do Diabo e o Diabo não é de natureza humana. Em Auschwitz,
não foi alguém com poderes sobrenaturais ou alguém estranho à espécie
quem ordenou que se infligisse sofrimento aos prisioneiros. Foram homens
comuns, que procediam inclusive do mesmo meio social de muitas de suas
vítimas.
Afora isso, destaco que não foram alguns, mas milhões; destaco
ainda a ausência de simetria entre crime e punição; destaco o sofrimento
inútil; destaco que eram cidadãos comuns transformados em assassinos.
Faço este breve percurso sobre alguns termos e noções derivadas
do universo religioso porque foram estes os primeiros termos empregados
pela comunidade judaica, esta com mais difíceis razões para nomear o ocorrido, e também por entender que do Sagrado provêm muitas palavras que
povoam o imaginário social − sejamos crentes ou não.
Apliquemo-nos agora aos termos adotados no meio secular.
No campo da Psicologia, afirma-se terem sido os nazistas submetidos à pressão psicológica, o que os teria levado à uma obediência cega às
autoridades (MILGRAM, 1969) ou que, nos campos de concentração, teria
ocorrido uma regressão filogenética, retornando os homens a um comportamento semelhante ao de seus anscestrais da horda primitiva (BETTELHEIM, 1969). Esta situação justifica muitos dos atos, mas não é causa
suficiente, cabal. Pois mesmo na horda, conforme os antropólogos, os homens se organizam para sobreviver, e não matam senão em defesa própria.
E quanto ao autoritarismo, muitas vezes ele provoca mais a rebeldia do que a submissão. De resto, seria possível a concentração numérica de tantas
perversões em um único universo ao mesmo tempo?
Crime: por certo é o termo mais apropriado se levarmos em conta
a responsabilidade que todo o cidadão tem de responder pelo que faz perante a lei; mas poderíamos entender como crime os atos praticados pelos
próprios judeus ou ciganos, quando organizavam as filas de indivíduos que
deveriam entrar nas câmaras de gás? Chamaríamos de crime quem roubou
um sapato no inverno ou delatou o outro por ter roubado pão?
Tortura: historicamente, a tortura foi um método legal ou estatal
para forçar uma pessoa a falar a verdade, constituindo um método de repressão de tendência secular (PETERS, 1985). A tortura explica uma grande parte dos fatos, se por tortura entendermos que esta
...busca , à custa do sofrimento corporal insuportável, introduzir
uma cunha que leve à cisão entre o corpo e a mente. E mais do
que isto: ela procura, a todo o tempo, semear a discórdia e a
guerra entre o corpo e a mente. Através da tortura, o corpo
torna-se nosso inimigo e nos persegue (...) da mais íntima
espessura da própria carne, se levanta uma voz que nos nega,
na medida em que pretende arrancar de nós um discurso do
qual temos horror, já que é a negação de nossa liberdade
(PELLEGRINO, apud BRASIL NUNCA MAIS, 1985, p. 281-
282).
Isso também ocorreu. Muitos tiveram, como afirma Levi, suas almas e suas vontades massacradas. Mas, nos campos de concentração, ninguém exigia que os prisioneiros falassem, confessassem alguma verdade.
Pelo contrário, a ordem era para que sofressem em silêncio.
Michel Foucault, em um de seus últimos escritos, mencionou que
se tratava de uma guerra de raças, produto da centralização da ideologia
racista nas mãos do estado (1999). Mas qual guerra levaria a que os combatentes procurassem apagar os vestígios de sua vitória?
Genocídio: sim, este é um nome bem próximo das intenções da
elite nazista, que o designou como a Endlösung, mas os assassinatos não se
limitaram a um só povo ou a uma única cultura − foram presos testemunhas
de Jeová, ciganos, homossexuais, doentes físicos e mentais, membros de
partidos de esquerda.
O trabalho escravo foi empregado, mas, de novo, insisto na tese
da assimetria: ali, o trabalho era desprovido de qualquer valor utilitário e
boa parcela da mão-de-obra era eliminada antes mesmo de tornar-se inútil
à produção.
Hannah Arendt nos fala ainda que os campos de concentração foram um laboratório, um experimento:
Os campos são um Laboratório vivo que revelam que tudo é
possível, que os humanos podem criar e habitar um mundo
onde as distinções entre vida e morte, verdade e falsidade,
aparência e realidade, corpo e alma, e até vítima e algoz são
constantemente confundidas (...) os campos apresentam,
primeiro, a morte jurídica; depois a destruição moral e
finalmente que a individualidade do ser tem de ser esmagada
(cf. HABIB, 1996, p. 65).
Todos estes termos, estes quadros explicativos, por mais densos
que sejam, não abarcam a totalidade daquele experimento. A singularidade
daquele ato violento, já apontada por diversos teóricos do tema, parece-me
sem precedentes: mais do que torturá-los, escravizá-los, eliminá-los enquanto
povo da face da terra, utilizá-los como cobaias, importava transformá-los
em não homens. Para quê? Para quem? Eis o abismo que se apresenta ao
historiador, quando ele se pergunta sobre o lapso entre intenção e resultado,
causa e efeito.
Ora, meu objetivo não é o de apresentar uma tese alternativa às
mencionadas, tampouco negar-lhes a validade; apenas demonstrar a dificuldade de acercarmo-nos do tema.
Para contribuir com este intuito, pretendo apresentar, ao lado das
teses já enunciadas e segundo meu entendimento, os elementos de cristalização do ato violento, indagando-me sobre os sentimentos que levaram
tantos indivíduos comuns a cooperarem com os campos de concentração,
traçando ainda algumas analogias com outros fenômenos em que a violência se introduz na política.
Entre a violência simbólica e a violência física
Em primeiro lugar, esclareço o que compreendo por violência: Todo
o ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém
(coagir, constranger, torturar, banalizar); todo ato de violação da natureza de alguém (violar); todo o ato de transgressão contra o que alguém
define como justo e como direito (desnaturar, agredir, ofender); todo ato
ou palavra que leva ao rebaixamento da dignidade humana (humilhar,
ultrajar, desamparar).
Quanto à violência política, ou melhor, a violência no político, tomemos o exemplo daquela praticada nos regimes de caráter autoritário ou
totalitário, essencialmente onde estes operam o terror, pois aí, a violência é
radicalmente muda.
Nesses casos, sabemos que a violência é sempre exercida contra
um outro, outro desenhado, real ou imaginariamente, como inimigo. Outro
que, mesmo tendo perdido sua importância (ou até desaparecido), continua
a fornecer as energias afetivas ao regime. Outro que, quando denunciado,
encontrado e aprisionado, serve de reforço ao entusiasmo nutrido pelo chefe carismático ou pela restauração da ordem, como é o caso das ditaduras
militares latino-americanas. Outro que, inclusive, está presente nas origens
dos movimentos que prefiguram a instauração de regimes totalitários ou
autoritários.
Para entendermos esse processo, resgatemos, como o fez o historiador Pierre Ansart, a dimensão socioafetiva de tais movimentos.
A eles precede sempre, segundo o autor, um conjunto de paixões
políticas, alimentadas num pequeno grupo (geralmente, de caráter sectário), que são expressas de forma a denunciar, com intensa violência verbal
(ou mesmo violência física), o inimigo: os imperialistas, os judeus, o Tratado de Versalhes, a burguesia, os criminosos, os subversivos. Quando identificados como forças do mal, o ódio é iniciado sem clemência, ao mesmo
tempo em que é produzida uma identificação afetiva com o chefe do grupo
(ANSART, 1983, p. 132).
Uma vez assumido o poder oficial, os prosélitos do movimento,
que se tornam então os governantes, destroem as oposições formais, alojando seus “resíduos” em instituições tornadas oficiais – necessariamente denominadas como secretas, protegidas dos olhares dos demais e, em alguns casos, dos próprios donos do poder, que delegam a sua guarda ao
segundo ou terceiro escalão do governo.
Segundo Ansart,
Estas instituições invisíveis se confundem com a lei, a lei do
amor, já que os princípios que ela propõe são os fins mais
elevados da sociedade (o sistema social e seu chefe); o amor
faz a lei porque doravante não há mais distinção entre os amores
propostos e os constrangimentos a partir dos quais se proíbem
as transgressões (1983, p. 138 − tradução livre da autora).
É nesse espaço confinado, invisível, porém não plenamente desconhecido, que se encontra imageticamente o opositor. Nesse espaço confinado, do qual inclusive desviamos o olhar, sabemos que o mal, o erro, está
aprisionado. Não sabemos ao certo o que fazer dele, sentimos apenas que,
embora próximo, está impedido de agir.
Meu argumento pode ser reforçado quando levamos em conta o
lugar do inimigo nos discursos oficiais, mesmo quando este já perdeu sua
relevância numérica ou política. Embora exilado, deportado, preso ou mesmo morto, continua sendo apresentado como um mal ameaçador, um perigo iminente. Cito como exemplo o filme Der ewige Jude (O eterno judeu),
de Fritz Hippler, produzido à época do nacional-socialismo, no qual cenas
de um gueto judeu são projetadas alternadamente com cenas de ratos num
celeiro, sendo simultâneas à seguinte locução:
Em todos os lugares onde surgem ratos, eles provocam a ruína
do país, destruindo os bens e a alimentação dos homens. É
assim que eles propagam doenças tais como a peste, a lepra, o
tifo, a cólera etc. Eles são dissimulados, medrosos e cruéis e
aparecem, na maioria das vezes, em bandos. Representam, entre
os animais, o elemento de destruição pérfida e subterrânea.
Exatamente como os judeus entre os homens. (apud LOSFELD,
1972, p. 202 − tradução livre da autora)
Ele é um adversário que não pode ser tratado como mero opositor,
porquanto dotado de um poder misterioso e absoluto;5 assim, os líderes do
regime logram garantir continuamente a obediência de seus liderados, obediência que se pretende cega e sem limites. Obediência que resulta de uma
lógica aterrorizadora.
Para melhor compreender tal dimensão, gostaria de me valer do
esquema proposto por Roger Dadoun, quando procura explicar a violência
praticada por grupos terroristas, e que me parece paradigmática para entendermos o caráter instrumental da violência no político.
Primeiro, porque, nesse caso, os terroristas, eles mesmos, elegem
um espaço confinado (os aparelhos) para conviver, planejar e executar suas
ações; segundo, porque tais grupos se percebem como fruto de uma violência anterior a eles; terceiro, porque, como nos regimes totalitários, praticam
a violência em nome de – o chefe carismático, o partido, o grupo, a revolução – e, por último, por seus delírios paranóicos (há sempre uma ameaça
contra um bem absoluto6
e, por via de consequência, contra eles mesmos,
que são os seus legítimos representantes e protetores).
O ato violento é, portanto, sua última esperança. Ato que pressupõe, segundo o Roger Dadoun, três elementos:
Um drama que se encena a três, se considerarmos constitutitivo
de um triângulo terrorista três elementos: o Grupo, o Sistema,
a Massa. Entre eles, realizam-se estranhos e problemáticos
cruzamentos que poderíamos esclarecer com a ajuda de uma
analogia com a estrutura do psiquismo. Centrado, concentrado
sobre si mesmo, egocêntrico, narcisista, pretendendo autonomia
e identidade, o Grupo corresponderia convenientemente ao Eu,
instância da consciência, da iniciativa, do domínio, do discurso;
valor dinâmico, coerente e da posteridade. O Grupo se dirige
contra o Sistema, que poderia representar o Superego, pois ele
profere as proibições, dita a lei e a norma, detém a autoridade
e impõe a repressão. O Grupo e o Sistema, dualidade belicosa
e armada, visam juntos um terceiro termo, que é a Massa – ou
“povo”, ou “proletariado”, ou “nação”, “comunidade”, etc. força bruta, inconsciente, reservatório de energia, que
compararíamos validamente ao Isso. O Grupo afirma trabalhar
– ele que é Eu, consciência, vontade, cabeça − pela totalidade
do Corpo Social,... (DADOUN, 1998, p. 38)
Inspirando-nos nesta analogia, detenhamo-nos em outros processos políticos nos quais a violência assume papel central.
No processo da tortura, pode ser representado este mesmo triângulo: o Eu, que é o governo (a elite do sistema responsável pelos aparelhos
oficiais de repressão ou o próprio torturador, que representa ou se imagina
governo); o Superego, que são os subversivos, cujo poder é imaginado como
de maior envergadura do que o próprio poder do governo – na tortura não
importa apenas fazer falar, mas sobretudo fazer calar o inimigo, este, freqüente e ironicamente, apresentado como terrorista. E um Isso, que não é a
massa ou a população, mas a ordem. Quando realizei pesquisa no arquivo
do Dops, relativa aos mecanismos de repressão sob o regime autoritário no
Brasil, entre 1964 a 1985, pude observar que tanto o subversivo visto como
terrorista em potencial quanto a obsessão pela ordem − a ser mantida com
uma lógica tipicamente militar – eram as principais justificativas alegadas
pelos informantes do sistema.
Um outro exemplo que não deixa de manter vínculos com o passado nazista: a prática da delação, que também é secreta e, aos olhos de seus
autores, invisível. Para ilustrar esta representação, valho-me do exemplo da
ex-Alemanha Oriental, país em que, no lapso de quarenta anos, a prática da
delação e da suspeição afligiram praticamente todos os seus cidadãos.
A Alemanha Oriental, segundo Hockenos, “fundamentou sua legitimidade como estado não em suas credenciais nacionais, como um estado
alemão, mas sim em sua identidade política, como um estado socialista”
(1995, p. 92); sob a tutela da União Soviética, tinha a enfrentar dois inimigos: o seu próprio passado, identificado como fascista, e a sua cultura (encarnada também no estado vizinho – a República Federal) – denominada
em tom pejorativo de germanidade. Um dos símbolos mais marcantes dessa ruptura, pelo menos para mim, que tive a oportunidade de observá-lo de
perto, foi o desenho urbano da capital da Saxônia, Erfurt. Aquela cidade
tinha sido celebrada no passado como a terra que vira Lutero amadurecer
suas convicções em favor da Reforma da Cristandade; ali estava a universidade que freqüentara e o mosteiro onde vivera por dez anos, patrimônio
religioso e histórico de fundamental importância. Ali a violência contra a
memória de seus habitantes se me tornou particularmente nítida.
O centro da cidade foi praticamente abandonado, deixado envelhecer, permanecendo deserto; nas casas antigas, moravam poucas famílias, as mais desafortunadas, provavelmente. Já em sua periferia, foi construído
um anel de blocos de edifícios de quatro andares, com apartamentos de
padrão uniforme, e, entre eles, pequenos centros de comércio e de diversão,
constituindo o espaço de sociabilidade de seus habitantes. Ali, uma outra
Erfurt, totalmente estrangeira à “velha” e germânica Erfurt. Aquele centro
se me soou como uma ruína, não por evocar um passado glorioso, mas pela
caducidade que se pretendia imprimir àquela História.
Nessa pátria socialista, as imagens de Franz Kafka se concretizaram: em seus arquivos secretos, a Staatssichereitdienst − STASI − arrolou 6
milhões de dossiês pessoais, sendo 4 milhões de habitantes desse território
e 2 milhões da República Federal. De cada 3 cidadãos adultos da República
Democrática Alemã, pelo menos um era suspeito ou indiciado como suspeito de subversão. Para que tais arquivos atingissem esse número, seus
governantes contaram com nada menos do que 100 mil pessoas, entre funcionários e colaboradores (Mitarbeiter). Segundo Joachim Gauck, tais indivíduos consentiam em entrar em igrejas, disfarçando-se de crentes, em
escolas, universidades e diversas outras instituições com o objetivo de colher informações para o Estado, com o velado propósito de verem resolvido seus próprios problemas com a polícia. “Bem, se você cooperar conosco,
seus problemas se resolvem mais facilmente” (1991, p. 28), era o convite
dos funcionários para que os Mitarbeiter se cooperassem. Problemas como
regularizar a infinidade de papéis exigida pela burocracia governamental,
suspeita de espionagem, de manter relações com cidadãos da República
Federal (o que era bem plausível, uma vez que muitos possuíam parentes
naquele outro país), suspeita de comprometimento com o passado nazista, necessidade de um bom currículo para a admissão ao serviço público, eram
obstáculos, entre outros, que podiam ser superados por meio da delação.
Nesse sistema, o Eu delator é um grupo ou um indivíduo aterrorizado por deter um segredo que Ele, o governo, exige saber, o qual é revelado em nome de um Isso, a sua libertação, ainda que jamais definitiva ou
estável.
Finalmente, no nazismo, triângulo semelhante pode ser observado: o Eu, neste caso, é o partido, ou mesmo o próprio Führer, que todos na
verdade desejam encarnar; o Superego, os inimigos do Estado (judeus,
comunistas, homossexuais, testemunhas de Jeová, ciganos); o Isso, a raça
ariana, que necessita de uma limpeza, mas também, o próprio chefe, Adolf
Hitler, em nome de quem é necessário abdicar inclusive de sua própria vida
privada.
Creio ser de fundamental importância tecer considerações sobre o
nazismo e seus laboratórios do tudo é possível (para empregar um termo de
Hannah Arendt), porque foram neles, como já mencionei, que a violência
assumiu o caráter, por excelência, de experimento.
Laboratórios de morte, mas de uma morte muito peculiar: a morte
segmentada; morte jurídica, ao que se sucedia a morte moral e só então a
morte física. Violência desprovida de critérios utilitários. Violência que transformou o assassinato em um experimento técnico, como por exemplo, a
utilização do Zyclon B, para que as vítimas morressem mais rapidamente −
“técnica” justificada porquanto desta maneira, não era dado tempo para
que, devido ao medo, as vítimas defecassem e “sujassem” a câmara de gás.
Ou, no outro extremo, pequenos atos violentos, e eu me lembro de um depoimento em que, uma mulher, sofrendo de renite alérgica, carregava consigo um lenço, o qual lhe foi retirado apenas para vexá-la diante dos outros,
devido a seu corrimento nasal.
Para vislumbrar como a predisposição à violência foi neste caso
potencializada, citemos alguns excertos das memórias do comandante de
Auschwitz, Rudolf Hoess; ele, jamais apresentando-se como sádico ou cruel, fala de sua própria experiência, a qual constitui, em nossa concepção,
um microcosmos da estrutura socioafetiva que produziu os perpetradores
dos crimes e brutalidades durante o regime nazista.
De seu entusiasmo face à nova Alemanha:
Nestes anos, a Alemanha estava vivendo um grande progresso,
a indústria e o comércio estavam florescentes como nunca. O
sucesso obtido por Adolf Hitler com a política externa saltava
aos olhos e impunha o silêncio àqueles que ainda se arriscavam
a combater o regime. O partido dominava o Estado. Seu sucesso
era inegável, seus métodos e seu princípio eram os únicos justos:
esta era a minha profunda convicção. (HOESS, 1995, p. 94 −
tradução livre da autora)
Do processo de sua despersonalização em favor à causa do líder:
Lutei muito tempo antes de fazer uma escolha entre minha
convicção pessoal e minha fidelidade aos juramentos que prestei
às S.S. e ao Führer. Quantas vezes não me perguntei se tinha o
direito de desertar? (...) Nacional-socialista desde longa data,
eu estava firmemente convencido da necessidade dos campos
de concentração. Era necessário colocar os inimigos do Estado
sob guarda (...) era o único meio de proteger o povo contra as
suas atividades nefastas. Estava firmemente convencido que
esta tarefa só podia ser cumprida pelas S.S., encarregadas da
defesa do novo Reich (p. 91-92). (Grifos meus)
De sua identificação fusional com o chefe, o comandante do campo de concentração de Sachsenhausen, onde Hoess exerceu uma função
administrativa, antes de servir como comandante em Auschwitz:
O comandante,... ainda que duro e severo, era todavia animado
por um sentimento fanático do dever e de um desejo sincero de
ser justo. Este veterano do nacional socialismo (...) me serviu
de modelo, parecia-me que minha própria natureza era um
reflexo da sua. Ele também passava por fases de benevolência
e de sensibilidade. Mas em todas as suas atividades, dava provas
de severidade e de dureza implacáveis. Eu me inspirava em seu
exemplo para fazer calar todo o meu impulso de fraqueza e
para me submeter às duras exigências de meu dever de S.S.
(...) Ainda hoje não compreendo como tive tanto sangue frio
para dar ordens de atirar. (....) penso que o que se exigia de
mim ultrapassava as forças humanas (...) no entanto Eicke [o
comandante citado] continuava suas exortações para nos incitar a uma dureza ainda maior. Um S.S. deve ser capaz, dizia-nos
ele, de aniquilar seus próprios parentes se eles se rebelarem
contra o Estado ou contra as concepções de Adolf Hitler. (...)
O dever de destruir o inimigo interno do Estado não se distingüe
em nada daquele que lhes obriga a matar seu adversário no
campo de batalha (p. 94-95 e 101).
De sua autêntica incapacidade de pensar, termo que empresto de
Hannah Arendt, ao se referir a Eichmann (1999), e que, ao meu ver, é plenamente aplicável à sinceridade de Hoess, quando da redação dos capítulos finais de sua biografia, já preso pelos aliados e no aguardo de sua sentença:
No momento em que se procedeu a subdivisão de Auschwitz,
sob a sugestão de Pohl, este me deixou a escolha entre dois
postos: comandante de Sachsenhausen ou chefe do Büro D1.
Para Pohl, era uma excepcionalidade permitir que o interessado
escolhesse seu posto. (...) ele me deu vinte e quatro horas para
refletir. Queria se mostrar benevolente porque a seu juízo eu
deveria estar ressentido por deixar Auschwitz.
E de fato, num primeiro momento, senti uma certa tristeza de
me separar de Auschwitz; sentia-me muito ligado a este campo
no qual eu tinha tido de vencer tantas dificuldades e tantos
abusos, onde tantos e pesados problemas ainda estavam por
ser resolvidos (p. 216 − grifos meus).
De seu ressentimento para com aqueles a quem considera ter servido:
Que o grande público continue pois a me considerar uma besta
feroz, um sádico cruel, como o assassino de milhões de seres
humanos: as massas não saberão fazer uma outra idéia do antigo
comandante de Auschwitz. Elas não compreenderão jamais que
eu, eu também tenho um coração... (p. 257)
O experimento: entre a memória e a história
Feitas estas considerações sobre sobre o que, no plano das paixões
políticas, cooperou para que Auschwitz fosse possível (o líder carismático,
o espaço confinado, a garantia de anonimato e impunidade, a colaboração
de inúmeros indivíduos, a tecnologia empregada, entre outros), indago, para
concluir minhas reflexões, sobre o significado dessa experiência para a História: para tanto, sem pretender uma resposta definitiva, valho-me do testemunho de um sobrevivente, Primo Levi, que afirmou ter sido o objetivo
último dos perpetradores a desumanização dos adversários. E que, 36 anos
após ter feito tal constatação, perguntou-se: Até que ponto os nazistas lograram seu intuito? Sua resposta foi afirmativa:
...Vivêramos durante meses ou mesmo
anos num nível animalesco: nossos dias
tinham sido assolados, desde a madrugada
até a noite, pela fome, pelo cansaço, pelo
frio, pelo medo, e o espaço para pensar,
para raciocinar, para ter afeto, tinha sido
anulado. Suportáramos a sujeira, a
promiscuidade e a destituição, sofrendo
com elas muito menos do que sofreríamos
na vida normal, porque nosso metro moral
havia mudado. Além disso, todos
roubáramos: na cozinha, na fábrica, no
campo, roubáramos “dos outros”, da
contraparte, mas era furto do mesmo
modo; alguns (poucos) se rebaixaram até
o ponto de roubar o pão do próprio
companheiro. Esquecêramos não só nosso
país e nossa cultura, mas a família, o
passado, o futuro que nos havíamos
proposto, porque, como animais,
estávamos restritos ao momento presente
(1990, p. 42).
De sua memória sobre aqueles anos de guerra, fala-nos ainda de
uma zona cinzenta, espaço de poder (também invisível) que se interpunha
entre as vítimas e os perpetradores. Nesta, encontravam-se os colaboradores (voluntários ou involuntários, se é que se podemos empregar esta palavra).
Figura terminal da zona cinzenta, conforme Levi, era o Sonderkommando (comando especial), ou seja, o grupo de prisioneiros que se incumbia das tarefas mais degradantes, como colocar nas câmaras de gás os indivíduos “selecionados”, retirar os cadáveres de lá, extrair seus dentes de
ouro, arrancar-lhes os cabelos − que serviam para o fabrico de colchões −,
limpar os fornos, organizar as próximas filas.
Havia aqueles que não participavam diretamente dos crimes: mas,
por saberem o idioma alemão ou o polonês, por serem fisicamente mais
aptos, por poderem trabalhar na enfermaria, tinham suas vidas poupadas.
Fora da zona cinzenta, encontravam-se os “muçulmanos”
(Muselman),9
jargão com que se designavam os “normais”; aqueles que ou
não exerciam uma atividade útil ao campo ou que não queriam ou não tinham a coragem de furtar e que obedeciam passivamente às ordens sem
quaisquer protestos. Estes enfraqueciam mais rapidamente, ficando com
uma aparência cadavérica, magérrimos e doentes; o Muselman era também
conhecido como cadáver ambulante, pois se encontrava efetivamente em
estado de grave apatia, como se não sentisse mais nada. Parecia ter perdido
toda a consciência e toda a vontade.
Prisioneiros com essas características sucumbiam mais depressa,
pois sucumbir era mais fácil do que sobreviver. Sim, porque segundo Levi,
ao se executar as ordens recebidas, obedecer a disciplina e realizar seu
trabalho, alimentar-se apenas de sua ração, a vida não duraria mais do que
5 ou 6 meses. E ninguém, nem mesmo os outros prisioneiros, nutriam por
eles qualquer sentimento de solidariedade. Eram repugnantes, queixosos,
chorosos.
À figura do Muselman, contrapunha-se a dos que tinham maiores
chances de sobreviver, como o prisioneiro Elias, um quase anão narrado
por Levi, que roubava, trabalhava, ria, praguejava e cantava:
Elias sobreviveu à destruição externa, porque é fisicamente
indestrutível; resistiu à aniquilação interna porque é demente.
Ele é, portanto, um sobrevivente: o mais apto, o espécime
humano mais adequado a esta maneira de viver. (1988, p. 99)
Homens como Elias, segundo as memórias de Levi, eram denominados com o termo Prominenz. Proeminentes eram os funcionários dos
estratos superiores e inferiores, os guardas, os garis, os cozinheiros, os encarregados das latrinas e das duchas e, ainda, os colaboradores da repressão, personagens assim descritas por Levi:
São o típico produto da estrutura do Campo de Concentração
alemão: basta oferecer a alguns indivíduos em estado de
escravidão uma situação privilegiada, certo conforto e uma boa
probabilidade de sobrevivência, exigindo em troca a traição da
natural solidariedade com os companheiros, e haverá por certo
quem aceite. (...) será, então mais odioso e odiado quanto maior
for o poder a ele concedido. Quando lhe for confiado o comando
de um grupo de infelizes com direito de vida e morte sobre
eles, será cruel e tirânico, (...) Acontecerá ainda que, a sua
capacidade para odiar, frustrada frente aos opressores, se volte,
incessantemente, contra os oprimidos (1988, p. 92).
Cada um por si, mentindo, subordinando, agredindo ou mantendo
alguns de seus padrões morais e, por isso, sucumbindo.
De um lado, as vítimas; de outro, os algozes com suas intenções e
ideologia. E entre eles, a zona cinzenta, na qual se encontravam os homens
dos estratos inferiores do regime e as vítimas que sobreviveriam, não por
heroísmo, solidariedade, ou mesmo vontade: talvez, por desejo de vingança; por certo, pela fé que alguns nutriam em Deus; ou ainda, pelo pouco
tempo em que lá se encontravam. Ao que se somou, com certeza, a necessidade de contar o que lhes sucederia.
Esses homens foram e são nossos principais documentos, nossas
fontes. Mas não apenas eles; também os algozes, que juntos, constelam
precisamente o que penso ter sido a experiência mais singular de Auschwitz:
a zona cinzenta de que nos fala Levi, onde tanto vítima como perpetrador −
ainda que por motivos muito diferentes − acabam por perder a empatia pelo
gênero humano.
MEI KAMPF E O IDEÁRIO NAZISTA
Por: Tiago Lemanczuk Fraga Caetano
RESUMO:
O presente trabalho analisa a essência da doutrina nacional-socialista, a partir de textos
selecionados da obra Mein Kampf, de autoria de Adolf Hitler. A grandeza de todo o movimento nazista
decorre de fatores singulares de ordens temporal e psicológica presentes na Alemanha do entreguerras,
os quais possibilitaram a ascensão do Partido Nacional-Socialista e a adesão do povo alemão ao
“corpo” daquele movimento.
“A tentativa de divinização de um
grupo humano por si próprio”. François
Perroux, apud Chevallier (2001; p. 392).
Mein Kampf, (Minha Luta), 1925-1927¹, obra escrita por Adolf Hitler, iniciada no
presídio militar de Landsberg à margem do Lech, na Baviera, pretendia oferecer ao povo alemão
não uma palavra de ordem eleitoral, mas uma “nova concepção filosófica de importância
fundamental”, uma nova concepção do mundo que, como uma verdadeira religião, em dogmas
precisos, destinava-se a tornar para o povo “as leis básicas de sua comunidade”. Hitler, apud
Chevalier (2001; p. 393).
O autor principia a obra com sua autobiografia, por considerá-la eminentemente
representativa (uma propaganda do Chefe). Nasceu em Braunau, cidade dos dois Estados alemães (Áustria e Alemanha), em 1889, fato que considerou “símbolo de uma
grande missão”, qual seja a de fazer triunfar, “contra todas as leis falsas e artificiais, uma lei
natural e sagrada: a da comunidade do sangue”. Expôs o chefe do partido nazista: “a Áustria
alemã deve tornar a grande mãe-pátria alemã (...). Os homens de um mesmo sangue devem
pertencer ao mesmo Reich...”, Hitler (1983).
A narrativa de Hitler é profundamente retórica. Nem por isso deixa de ser preciosa, ao
nos mostrar Hitler, decerto não tal qual foi exatamente, mas tal qual desejava ser visto pelo povo
alemão. Buscava comover as pessoas e edificar os crentes do nacional-socialismo amantes da
pátria vencida e humilhada ao final da I Guerra Mundial.
Torna-se importante uma rápida exposição histórica e contextual da situação da
Alemanha e de seu povo durante o entreguerras, momento em que surgiu o nacional-socialismo.
1. CONTEXTO HISTÓRICO
A Alemanha do pós-guerra, de acordo com a Constituição de Weimar (1919), era uma
República parlamentar, federalista e democrática, com o presidente eleito pelo voto universal e
direto. As funções do poder executivo eram exercidas pelo Chanceler ou Primeiro Ministro
nomeado pelo presidente.
Durante a República de Weimar, Hitler ingressa no denominado Partido dos
Trabalhadores Alemães, fundado em 1919, e torna-se, no ano seguinte, a principal figura do
partido, momento em que altera seu nome para Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores
Alemães, mais conhecido como Partido Nazista.
Aproveitando-se da ocupação francesa do Vale do Ruhr, principal região siderúrgica
da Alemanha, em 1923, Hitler e seu partido tentam um golpe para assumir o poder, tornando-se
conhecido pela expressão Putsch de Munique. Fracassada a tentativa, Hitler é condenado e preso.
É na prisão, como exposto, que começa a escrever o livro “Minha Luta”, onde apresenta o
programa político da ideologia nazista.
Decidido a chegar ao poder pelos meios legais, Hitler busca demonstrar para os
desempregados, marginalizados, pequenos burgueses empobrecidos, escalões militares e alta
burguesia, que o nazismo é a solução. Na época em que a ordem capitalista é combatida pelos
comunistas, o nazismo passa a ser visto, pela burguesia alemã, como o mal menor, ante o avanço
das esquerdas que não se entendem e divididas não percebem o crescimento do inimigo comum.
Nas eleições de 1932, Adolf Hitler concorre à presidência, mas é derrotado. No
entanto, em virtude de pressões dos setores militar e empresarial, temerosos da vitória comunista,
o presidente Hindemburg nomeia Hitler Chanceler alemão em 1933. Assim é que, por meio de um
decreto-lei, o chefe nazista obtém plenos poderes. Passa a gozar do título de Führer no ano
seguinte com a morte do então presidente.
Sob acusação de obra dos comunistas, os nazistas providenciam um incêndio do
Parlamento (Reichstag). O Partido Comunista é declarado ilegal e inicia-se a nazificação da
Alemanha. Tudo é controlado pelo Estado e o unipartidarismo se impõe. A indústria bélica e o
militarismo amenizam o problema do desemprego. É criada uma política expansionista para o que
Hitler denominava “espaço vital” e contra as “amarras do Tratado de Versalhes”.
O nazismo na Alemanha foi, portanto, um movimento contra-revolucionário. A ordem
estabelecida – poderio e privilégio capitalista – estava segura com a ordem nacional-socialista.
Ainda que pese o questionável emprego dos meios e métodos adotados pelos nazistas para o
alcance do poder, vale ressaltar que a população da Alemanha, envolvida pelos sentimentos de
impotência e humilhação provocados pela derrota na guerra e pelas imposições do Tratado de
Versalhes, apoiou o movimento, unindo-se ao corpo representativo de “as chamas que não apenas
iluminam o final de uma velha era, mas lançam suas luzes sobre a nova”. Joseph Goebbels –
ministro da Propaganda – apud Arnaut (1994; p. 29).
2. A OBRA MEI KAMPF
Adolf Hitler, como se sabe, era um grande orador. O caráter messiânico de seus
discursos políticos engrandecia o ideal nazista. Escreveu a obra em comento para expor de uma
melhor forma a finalidade e o desenvolvimento do nacional-socialismo, a fim de conquistar
adeptos desacreditados na república tendentes ao temido movimento revolucionário e, ao mesmo
tempo, oferecer esclarecimentos mais substanciais àqueles que já se identificavam com o Partido.
Os princípios da doutrina nacional-socialista foram estabelecidos nessa obra, apesar de
o autor esclarecer, já no prefácio do livro, que sabia “muito bem que se conquistam adeptos
menos pela palavra escrita do que pela palavra falada e que, neste mundo, as grandes causas
devem seu desenvolvimento não aos grandes escritores, mas aos grandes oradores”. Hitler (1983).
Assim a obra e a doutrina nazistas apresentaram dificuldades para que fosse
empreendida uma análise puramente político-filosófica. As hipóteses em que se baseou Hitler
para sustentação de sua doutrina estão, como veremos, predominantemente aliadas à retórica. O
autor, em muitas passagens, utiliza artifícios provocadores da paixão dos leitores, como apelos a
crenças religiosas, a experiências históricas, a valores sociais conservadores e a doutrinas
filosóficas.
O nazismo constitui experiência única, um movimento cujos fundamentos exprimem
conjuntamente grande originalidade. Ora, o nacional-socialismo caracteriza-se pelo nacionalismo
extremado, autoritarismo, racismo, anti-semitismo, belicismo, anticomunismo, antiliberalismo,
antiparlamentarismo e antiindividualismo. É mesmo singular.
Portanto, entendo como relevante, e essa é a proposta do presente trabalho, a
apresentação da essência do pensamento e da argumentação doutrinária de Adolf Hitler nos
textos, ora selecionados4
, da obra “Minha Luta”.
2.1. Povo e raça
Hitler quando jovem, em Viena, desencantou-se com a cidade que abrigava cidadãos
de todo o mundo, os não-alemães que tomavam os lugares dos alemães. Naquela época, sofrera
algumas decepções pessoais5
, fazendo revoltar-se contra a sociedade vienense (que acabava por
representar, ao menos para Hitler, toda a sociedade alemã da época). No campo político, os planos
social-democráticos como a filantropia, as obras de assistência e de previdência social, segundo
ele, eram pura bobagem e não eliminavam a iniqüidade e a desigualdade sociais. O que se
precisava atacar eram os “vícios profundos e orgânicos” da sociedade.
As formas de eliminação de tais vícios e o oferecimento de uma nova concepção de
mundo são trazidos no Capítulo XI, do primeiro volume de Mein Kampf, intitulado “Povo e Raça”
(Volk und Rasse).
Os homens erram ao acharem que quase tudo sabem sobre a Natureza, pois, com raras
exceções, ignoram que os seres humanos, como os demais seres vivos, devem respeitar o
princípio básico de sua organização: o isolamento dentro de sua respectiva espécie.
Já a observação mais superficial nos mostra, como lei mais ou menos
implacável e fundamental, presidindo a todas as inúmeras manifestações
expressivas da vontade de viver na Natureza, o processo em si mesmo limitado,
pelo qual esta se continua e se multiplica. Cada animal só se associa a um
companheiro da mesma espécie. O abelheiro cai com o abelheiro, o tentilhão com o
tentilhão, a cegonha com a cegonha, o rato campestre com o rato campestre, o rato
caseiro com o rato caseiro, o lobo com a loba, etc.
Só as circunstâncias extraordinárias conseguem alterar essa ordem entre as
quais figura, em primeiro lugar a coerção exercida por prisão do animal ou
qualquer outra impossibilidade de união dentro da mesma espécie. Aí, porém, a
Natureza começa a defender-se por todos os meios necessários, e seu protesto mais
evidente consiste, ou futuramente privar os bastardos da capacidade de procriação
ou em limitar a fecundidade dos descendentes futuros. Na maior parte dos casos,
ela priva-os da capacidade de resistência contra moléstias ou ataques hostis.
Isso é um fenômeno perfeitamente natural: todo cruzamento entre dois
seres de situação um pouco desigual na escala biológica dá, como produto, um
intermediário entre os dois pontos ocupados pelos pais (...). Semelhante união está,
porém, em franco desacordo com a vontade da Natureza, que, de um modo geral,
visa o aperfeiçoamento da vida na procriação. Essa hipótese não se apóia na
ligação de elementos superiores, mas na vitória incondicional dos primeiros. O
papel do mais forte é dominar. Não se deve misturar com o mais fraco, sacrificando
assim a grandeza própria. Somente um débil de nascença poderá ver nisso uma crueldade, o que se explica pela sua compleição fraca e limitada. Certo é que, se tal
lei não prevalecesse, seria escusado cogitar de todo e qualquer aperfeiçoamento no
desenvolvimento dos seres vivos em geral. 6 Hitler (1983; p. 185) (grifei).
Está justificado o racismo nazista. Hitler se apóia em postulado hipotético, apesar de
indemonstrável, fazendo por insurgir o orgulho dos arianos que se crêem parte de uma espécie
naturalmente superior, depositária do desenvolvimento da civilização humana. A superioridade
racial não se questiona, ela existe (é fato).
Advinda da Natureza, a superioridade alemã se torna, aos olhos de quem se deixa
seduzir, um postulado não exigente de maiores justificativas e atribuições meritórias. Hitler, na
intenção do movimento nazista, tinha que convencer para o momento apenas o povo alemão
desacreditado na república. Ao restante do mundo, seria imposta a superioridade ariana como
conseqüência do expansionismo planejado.
A mestiçagem racial não é natural. A tendência da Natureza é a purificação da raça.
Aplique-se ao ariano, raça superior, tal regra fundamental da Natureza. Ver-se-á aplicada, como
afirma a história,
que em toda mistura de sangue entre o Ariano e povos inferiores, o resultado foi
sempre a extinção do elemento civilizador. Hitler (1983; pg. 186).
Esse “empobrecimento” racial não pode prosperar sob as vestes da tolerância, do
pacifismo e da universalização dos povos. Todas as grandes culturas do passado pereceram, foram
extintas, pelo envenenamento do sangue da primitiva raça criadora. O homem que menospreza as
leis raciais perde a ventura que lhe parece reservada.
Com isso, decorre que é interno o combustível para a tocha do progresso da civilização
humana. A genialidade e o talento são dotes inatos e advêm do sangue ariano! A existência de
“povos inferiores” apenas serviu de ferramenta para a civilização superior.
Sem tal possibilidade de empregar gente inferior, o ariano nunca teria
podido dar os primeiros passos para sua civilização, do mesmo modo que, sem a
ajuda dos animais apropriados, pouco a pouco domados por ele, nunca teria
alcançado uma técnica, graças à qual vai podendo dispensar os animais. O ditado:
, possui infelizmente uma
significação profunda (...). Só os bobos pacifistas é que podem enxergar nisso um
indício de maldição humana. Hitler (1983, p. 191-192).
Para consolidar sua posição política, o judeu, povo sem Nação, tenta destruir as
barreiras sociais e de cidadania, que mais do que tudo o embaraçam a cada passo. A tolerância
religiosa, a pregação da igualdade entre os homens, a maçonaria e a imprensa14 são poderosos
instrumentos em suas mãos.
Hitler (1983) não apenas traça um perfil negativo dos judeus para indicar
indiretamente a necessidade da força e unidade para a glória de uma Nação (projeto nazista),
como também lhes atribui as “misérias” advindas do liberalismo e do comunismo. Aparentemente
antagônicos, os dois sistemas não passam de invenção judaica, construídos propositadamente
como blocos diferentes, de modo a iludir os povos aspirantes à justiça social.
Nesse ponto, a argumentação do autor15, em resumo, é a seguinte:
a) Com vistas à lucratividade, a evolução econômica produz uma alteração na distribuição do
povo em classes. O operário tem que se proletarizar em virtude da rara possibilidade de
ganhar a sua existência independentemente. Aparece consumada a separação entre
trabalhador e patrão;
b) Os judeus organizam de um lado os métodos capitalistas extremados de exploração
humana, e, por outro lado, acercam as vítimas de seus atos (pela compaixão fingida),
dirigindo, dentro em pouco tempo, a luta deles entre si. O judeu, que “outrora se serviu da
burguesia como arma contra o mundo feudal, agora vai atiçar o operário contra o
burguês”;
c) Doravante, só resta ao proletário lutar pelo futuro do povo judeu. Passa o proletariado a
servir a potência que pensa combater. Com a aparência de deixar o operário atacar o
capital, é que se pode melhor fazê-lo lutar pelo mesmo;
d) A campanha pela debelação das pragas sociais adquire caráter universal. Está fundada a
doutrina marxista16. Sob o disfarce de idéias puramente sociais escondem-se “intenções
francamente diabólicas”. “Através do operariado (...), o judeu destrói as bases da
economia nacional”;
e) “Pelo desprezo categórico da personalidade, por conseguinte da nação e da raça, o
marxismo destrói as bases elementares de toda a civilização humana, que depende
justamente desses fatores”.
f) “A luta judaica não consiste unicamente na conquista econômica do mundo, mas também
na dominação política”. Começa o judeu a “substituir o ideal democrático pelo da
Ditadura do Proletariado”. Subjuga e governa os povos “pela força bruta, ditatorialmente”.
Assim, Hitler condena o que diz serem os meios empregados pelos judeus para
consecução de seus supostos fins. O programa de dominação judaica não visa apenas à revolução
econômica, mas também política. Busca a destruição das bases nacionais em prol de um projeto
universal.
Economicamente, eles criam para os Estados tal situação que as empresas
oficiais, deixando de dar rendas, são subtraídas à direção do estado e submetidas à
fiscalização financeira do judeu. No terreno político, recusam eles ao Estado os
meios para sua subsistência, destroem as bases de toda e qualquer defesa nacional,
aniquilam a crença em uma chefia, desprezam a história e o passado, e enlameiam
tudo que é expoente de grandeza real (...). A religião é ridicularizada. Bons
costumes e moralidades são taxados de coisas do passado, até que os últimos
esteios de uma nacionalidade tenham desaparecido. Hitler (1983; p. 210).
A importância do Capítulo XI da obra sobre a qual se discorre se dá pela construção de
um espelho negativo para sustentação dos principais pontos do ideário nazista, que carecia ser
absorvido pelo povo (Volk). Para o nacional-socialismo, qualquer forma de desagregação entre os
filhos da Nação era prejudicial, assim como o era todo intento universalizante.
Como se a cartilha de aprendizado de um povo (judeu) pudesse conter todas as
diretrizes de um projeto econômico e político de dominação imune a todas as conseqüências deum processo histórico mundial, o discurso do Führer (como ele mesmo deixa transparecer) não
passa de instrumento retórico (evidentemente precário) para implantar na mente daqueles que a
luta nazista precisava envolver a idéia de que a manutenção da democracia ou mesmo a
implementação de qualquer medida revolucionária eram, além de “sujas” e fracas, extremamente
nocivas.
2.2. O Estado Alemão, seus cidadãos e súditos
Expõe Hitler (1983) que para as Repúblicas em geral, inclusive a de Weimar, há
apenas duas sortes de indivíduos: cidadãos e estrangeiros. A distinção entre os mesmos se dá
apenas no tocante ao acesso a cargos públicos e no direito de votar e ser votado. Como um
processo para entrar em um clube de automóveis, bastava ao candidato à cidadania alemã daquela
época fazer um requerimento que, por meio de um escrito, passava a ser considerado cidadão
alemão.
Naturalmente, o mais importante nesta época de realismo é a situação
financeira do candidato. É uma recomendação importante apresentar-se como um
presumível futuro contribuinte para apressar a aquisição do direito de cidadania nos
tempos atuais. Hitler (1983; p. 273).
Em patente crítica ao sistema republicano de governo e à “legislação tão insensata e
tão louca” como a de Weimar, Hitler coloca como absurda e interesseira a concessão de cidadania
alemã por meio da naturalização ou mesmo pelo nascimento (caráter jus solis). Nesses casos,
argumentos de raça nada valem e, por isso, “é preciso que se faça a diferença entre os que
concorrem para a existência e grandeza da nação e os que residem no país apenas para ganhar a
vida”. Hitler (1983; p. 274).
Ao reavivar o sentimento de honra inerente à cidadania, o autor emprega forte
instrumento a fomentar o nacionalismo do povo ariano. Ser cidadão do Reich requer mais que a
mera adequação a questões documentais e territoriais.
O Estado nacionalista divide seus habitantes em três classes: cidadãos, súditos
e estrangeiros. Só o nascimento dá, em princípio, o direito de cidadania, Não dá,
porém, o direito de exercer cargo público ou tomar parte na política, para votar ou
ser votado. Quanto aos chamados súditos, a raça e a nacionalidade terão sempre
que ser declaradas. A esses é livre passarem dessa situação à de cidadãos do país,
dependendo isso da sua nacionalidade. O estrangeiro é diferente do súdito no fato
de ser súdito em um país estrangeiro (...). Deve ser uma honra maior ser varredor
de rua em sua Pátria do que rei em país estrangeiro. Hitler (1983; p. 274).
O título de cidadão é, assim, o mais importante documento para toda a vida do súdito
alemão. Só é concedido aos que receberem a educação18 (nazista), ministrada a todos, servirem o
exército e prestarem solene juramento à coletividade e ao Estado. Em outras palavras, apenas os
que ingressarem de corpo e espírito no movimento nazista é que merecem a cidadania alemã. As
súditas, por sua vez, adquirem cidadania pelo casamento ou pelo exercício de trabalho honesto.
Entrementes, a educação nacional e a cidadania alemã não são suficientes para o
ingresso do indivíduo aos cargos públicos ou a participação na política. O acesso se torna restrito
e dependente dos interesses do Partido de forma a não se perder a unidade do ideário nazista. Os
indivíduos de maior valor intelectual e ideal é que devem servir à frente da nação.
O reconhecimento do valor da personalidade torna-se essencial ao movimento.
Segundo o autor, o discurso comunista de que todos os homens são iguais (ponto de vista
democrático das massas) acaba por ignorar o poder criador do indivíduo, cujas descobertas podem
traduzir benefícios para toda a coletividade.
As massas nunca inventam, nunca organizam ou pensam por si (...). A ação
destruidora do judaísmo em vários aspectos da vida do povo deve ser vista como
um esforço constante para minar a importância da personalidade nas nações que os
acolhem e substituí-la pela vontade das massas. O princípio orgânico da
humanidade ariana é substituído pelo princípio destruidor dos judeus. Hitler (1983;
p. 277-278).
O “valor pessoal” como “princípio natural” constitui a justificação do culto essencial à
imagem do Chefe, depositária de toda a força do ideário nazista. O Führer, mesmo auxiliado
pelos seus conselheiros, é sempre quem profere a última palavra.
Mas é importante que fique claro que o nazismo não prega nem o poder tirano, nem o
totalitarismo estatal. Os trabalhos do Estado nacional e de seu líder se sustentam sobre os pilares
da “autoridade” e da “responsabilidade”. Hitler (1983; p. 280). Vale dizer que o Chefe só
permanece no poder enquanto atender às aspirações de todo o movimento nacional-socialista.
O Estado não é um fim em si, mas simples instrumento e o que importa é o conteúdo.
O Estado em si não se acha dotado de nenhum prestígio especial. Magia, prestígio, idolatria
acham-se reservados ao Volk (unidade racial baseada na comunidade de sangue). Eis o conteúdo,
sendo o Estado apenas o seu continente, tendo razão de ser apenas enquanto capaz de conservar e
de proteger o que nele está contido.
Como para Lênin (e para Marx e Engels), Hitler via no Estado apenas um aparelho
administrativo de governantes, de repartições, de meios de coerção.
O Estado nazista é estritamente técnico e está a serviço de um fim, que é a manutenção
e o desenvolvimento de uma comunidade de seres humanos da mesma espécie, tanto física quanto
moral.
Dupla se revela a missão do Estado instrumento racial: no interior,
conservar e melhorar a raça, senão refazê-la; no exterior, conquistar o espaço
necessário à vida e à dominação natural dessa raça. Chevallier (2001; p. 409).
Assim é que o Estado nacionalista, sobre a base da autoridade, deve trabalhar para
libertar o governo do princípio parlamentar da maioria, preparando todo o corpo da nação a
receber a nova ordem de coisas.
2.3. Concepção do mundo
A primeira tarefa no combate pela imposição do Estado nacionalista é a remoção das
“concepções judaicas atuais”. As maiores barreiras são os preconceitos e interesses impedidores a
instalação da nova idéia. Por isso mesmo, a obra de Hitler busca erigir seu ideário por meio de
críticas negativas tecidas contra todas as instituições em vigor.
Os homens que querem salvar o nosso povo da atual situação não devem
quebrar a cabeça sobre se as coisas se deveriam passar dessa ou daquela maneira,
mas devem tentar os meios para demover os obstáculos do presente (...). Só se
vence um terror com outro terror. Só, então, pode-se iniciar a obra de construção.
Hitler (1983; p. 282).
Não há tempo para questionamentos. O Partido nazista surge como a única opção, é
intolerante e não quer dividir espaço com nenhum outro partido político concorrente. Só há um
Partido e uma idéia triunfante.
O programa de uma nova doutrina deve – inclusive para alcançar o pacifismo (Hitler,
1983; p. 187) – se traduzir na forma de declaração de guerra contra as atuais maneiras de
compreender o mundo. Da mesma forma, “pensavam pelo menos os nossos visionários alemães
que, por esse meio, chegaram a seus fins”. Hitler (idem).
Sabe-se que o projeto do movimento era expansionista. A Alemanha objetivava, a
qualquer custo, renascer no campo das potências mundiais e impor a verdade da lei racial para as
nações que a subjugavam ou desconheciam.
Com vistas a tal propósito, o autor, que em outro momento criticava a alienação
popular frente os instrumentos de dominação, agora prega a necessidade de adesão interna
irrestrita ao movimento, alegando simplesmente ser essa a única saída para a Alemanha.
Argumentações e questionamentos internos sobre questões de programa não são bem vistos, posto
que “diminuem a vontade e a força no combate pela idéia”.
Não é necessário que cada lutador, individualmente, tenha conhecimento
completo de todas as idéias e do processo mental dos líderes do movimento (...). É
o mesmo que acontece com o soldado na tropa, o qual nunca está a par dos altosplanos estratégicos (...). A força de um partido político não repousa em uma
intelectualidade elevada e independente de seus adeptos, mas sobretudo na
obediência disciplinada com que a direção intelectual assegura a vitória. Quem
decide é a própria direção. Hitler (1983; p. 283-284).
A consagrada frase fé cega, faca amolada parece nortear o espírito de Hitler em sua
construção retórica acerca da luta pelo movimento. Quanto mais centralizada e uníssona uma
concepção, não obstante não ser perfeita, mais vantajosa se mostra, na medida em que corporifica
uma nova organização inquebrantável.
As idéias mestras do novo movimento “são sintetizadas em vinte e cinco proposições
principais destinadas a orientar a luta”. Hitler (1983; p. 284). O que elas procuram é a eficácia,
não a satisfação de um punhado de estetas ou de eruditos. Assim, não se dirigem tanto ao cérebro,
mas aos sentimentos da multidão.
Torna-se inadmissível qualquer tentativa de representar a idéia nacionalista fora dos
limites do Partido, pois somente ele carrega a força criadora do movimento nazista.
3. CONCLUSÃO
O certo é que, no estado definitivo, Mein Kampf, (...) não denota mestria
intelectual alguma. Achamo-nos verdadeiramente em presença de um caso-limite,
em que uma prodigiosa oportunidade histórica proporcionou uma força de
penetração e uma celebridade extraordinárias a uma obra intrinsecamente medíocre
– mesmo sem levar em conta o fato de que revolta, sob tantos pontos de vista, o
espírito humano. (...) Os pesados e extensos desenvolvimentos, cheios de
repetições, desastrados, muitas vezes intermináveis, são improvisadamente
atravessados por uma incendiária e devoradora paixão. (...) A doutrina nacionalsocialista qual a expõe Mein Kampf, resulta de um amálgama de idéias puramente
empíricas e utilitárias, cozinha propagandista de consumada habilidade. Chevallier
(2001; p.419-421).
Do próprio rumo que tomaria a história alemã a partir de 1925, é que dependia o
destino do livro em comento. A princípio passa quase desapercebida, mas lentamente a obra vai seespalhando. Devido à pavorosa crise (1929 a 1933) marcada pelo desemprego, proletarização e
miséria, o Partido Nacional-Socialista progride a passos gigantescos e com ele a difusão da obra
de Hitler.
Embora a ideologia nazista tenha sido posta em prática somente com a chegada de
Hitler ao poder (por sua nomeação ao cargo de Chanceler), a propaganda surtiu o efeito esperado.
Ao mesmo tempo em que garantia aos burgueses a conservação de sua superioridade econômica,
“utilizava em sua veiculação palavras de ordem socialista” para conquista da classe de
trabalhadores tendentes à revolução.
Desacreditada nas vias republicanas para a concretização da sonhada reviravolta, a
massa depositou confiança na unicidade dos ideais nazistas, fortalecendo o “corpo”, o amálgama
onde se viam diluídas as personalidades da raça superior.
Pode-se dizer que a subordinação do indivíduo à coletividade não se restringiu a
motivos econômicos. Houve uma interpenetração entre as esferas econômicas, políticas, culturais,
ideológicas. Tudo estava ligado ao movimento.
A novidade do nazismo era sua força psicológica22, que predispunha todos,
trabalhadores ou não, a aceitarem ou assumirem seu corpo ideológico. Lenharo
(1986; pg. 11).
O culto à imagem do Führer era a maior arma que possuíam os nazistas para a
preservação da multifacetada unidade. Um líder carismático servia de lugar-comum para os
integrantes do “corpo”.
Porém, por todo o exposto se depreende que autoritário era o movimento nazista. Não
era o Führer, não era o Estado e não era o povo per si. Enquanto se mantinha a unidade, se
mantinha a força. Assim é que a obra ora comentada instrumentalizou, da mesma forma que
acorrentou, a mente alemã. A obra se dirigia, antes de tudo, ao poderoso exército da juventude
ariana, cuja educação racista já se encarregava de formar os grandes arquitetos do novo Estado.